Quem nunca viu a mudança de comportamento dos motoristas, cobradores e, até mesmo, dos passageiros, durante os fins de semana?! Ao som do pagodão, de pernas (ops, meias) pro ar, com direito a batuque, cerveja e muito barulho, alguns caem na gandaia, outros reprovam o comportamento, há os que ironizam e tentar relevar o que, em outros países, é considerado falta de educação ou invasão da privacidade - Mas sabemos que a vida é dura e que é preciso brincar um pouco pra deixá-la mais positiva, leve e espontânea, mesmo que o relógio dite as regras e que o dinheiro faça parte de cada ato.
Há os coletivos que não param no ponto, aliás, isso é coisa certa! Neste mundo de pneus, o que vale é a velocidade, mesmo que para isso seja necessário praticamente rasgar o contrato de trabalho - Nesses momentos de raiva e frustração, eu bem queria ter uma espécie de dispositivo com o poder de parar o transporte a qualquer custo, forçando o motorista a cumprir sua função e repensar a falta grave cometida, geralmente, com a maior naturalidade.
E o que dizer dos condutores que são viciados em manobras radicais e se esquecem dos idosos, deficientes, das grávidas e crianças prestes a quebrar a cara na próxima curva? Há os que jogam lama nos dias de chuva e os ônibus que mais parecem um “navio negreiro”, diante da superlotação, especialmente, nos horários de pico, num típico “esfrega daqui, esfrega de lá” - Se nos dias ensolarados quase derretemos dentro de veículos sem ventilação ou janelas não adaptadas à farta iluminação natural, nos dias de chuva o receio de se molhar leva o povo a cerrar qualquer abertura, deixando os claustrofóbicos à beira de um ataque.
Os djs são, majoritariamente, passageiros, e insistem em menosprezar a importância dos fones de ouvido; há os espaçosos, que só faltam sentar no seu colo, sem deixar de citar os “sem noção”, que contam sua vida no celular em alto e bom tom.
Também me deparei com muitos turistas gaiatos e farristas, que, por pouco, não colheram os frutos do excesso de descontração nesta terra que transmite insegurança a todo instante – assaltos, arrastões, a guerra do tráfico e os problemas da pacificação nada pacificadora.
E quanto aos vendedores ambulantes? Estes merecem um capítulo à parte. Se a geração hi-tech levou à praticidade às ruas, os microfones auriculares, com direito a caixinhas de som amplificadas, pouparam as gargantas de quem tira dali o seu ganha-pão, mas se tornaram ainda mais invasivos para os que decidem realizar uma leitura no caminho de casa ou do trabalho ou, simplesmente, não têm interesse de comprar nenhum produto.
E os vendedores-poste, ocupação mais sem sentido da história da humanidade? O cúmulo da exploração da mão de obra (acho que Marx enfartaria ao se deparar com a cena). Mas há os vendedores-artista, que declamam, contam piadas, tocam, choram? Sim, o que dizer da que se ajoelha em seus pés e implora por um trocado, da que entra com o filho no colo e diz que teve o corpo quase todo queimado – escondendo algumas partes por serem um tanto íntimas demais? E os que te obrigam a segurar a mercadoria para dar apoio moral? Seriam o cúmulo da caridade?
Ainda existe o excesso de papel, que se confunde com o chão e enfeia a paisagem já improvisada das passarelas, calçadas e avenidas. Garot@s-propaganda, que não sabem o que fazem, mas entregam e só querem se livrar da quantidade – outro absurdo da mais valia?
A capital também tenta ser inclusiva e há espaço para cegos, surdos, cadeirantes... Sinais sonoros? Quebrados! Piso tátil? Tateando por aí! Rampas e elevadores de acesso? Até há, mesmo diante do despreparo de quem os conduz e da insatisfação dos demais por conta dos minutos destinados ao acolhimento.
Mas devo tirar o chapéu para os que desafiam limitações e surpreendem ao enxergar com o coração. “Se tiver alguma grávida, senhora, criança, alguma grávida, principalmente, que não tenha nenhuma moeda no bolso, é só chamar”, diz o cego que conhece bem os caminhos tortuosos da capital baiana, ficando a postos pra descer no ponto sem qualquer auxílio.
Há os surdos, que, com seus papéis, lembram à sociedade que o domínio da Libras está muito longe de ser atingido pela nossa geração; há os “loucos”, como o senhor da escadinha de Nazaré, com sua barba e estilo raulseixista, que, nos últimos meses, fez voto de silêncio, mas, em outros tempos, dava as “ideias-cheque”, e o hilário, que vende mercadorias cantando, dançando, lamentando suas dores, pulando em sua frente, sem nenhum nexo causal entre os comportamentos inusitados.
Também há espaço para o trabalho infantil, e não são poucas as crianças que aprendem desde cedo que a rua é sinônimo de sobrevivência – ou morte!
Quanto aos sem teto? Como pode um ser vivo viver fora? Simplesmente fora do sistema que o reprime e o aprisiona em viadutos, passarelas, esgotos, pontos de ônibus, porta de bares e casas? Fora, fora de órbita, fora do tempo, fora da ordem?
Há os que insistem em desafiar a lei e o olfato, urinando nas vias públicas, em plena luz do dia. Seriam eles o sem-vergonha de plantão ou apenas reféns da falta de banheiros públicos minimamente decentes?
Há os que jogam lixo pela janela sem pensar, por puro hábito e falta de consciência; há oferendas rotineiras, que tanto sujam o ambiente e são sinônimos de perigo, com seus objetos pontiagudos; há manifestações, acidentes de trânsito – com destaque para batidas e atropelamentos -, blitzs, arrocha e axé de montão – ainda assim, com muito mais espaço para outros estilos musicais do que no interior do estado.
E o metrô-tartaruga? Demorou quase 15 anos para entrar em funcionamento – diga-se de passagem, sobre e não sob a cidade, com uma paralisação de funcionários e um descarrilamento em seu currículo?
Há a mania dos shoppings, que parecem nunca cair de moda, levando multidões às compras, e o que falar do atendimento nas grandes lojas varejistas, com a insatisfação estampada no rosto de cada vendedor, incluindo reclamações que vão dos colegas ao patrão e à empresa, numa falta de bom senso, ética e qualidade no atendimento – novamente, reflexos da “escravidão” pós-moderna?
Policiais truculentos? Sim, isso aqui tem de sobra, com direito a grandes e imponentes armas apontadas para o ar; Malandragem? Claro, afinal, numa cidade com tanta desigualdade social, o que você queria? Ambulâncias e viaturas com sirenes ensurdecedoras? Yes, we do.
Mas soteropolitano que é nativo mesmo corre atrás e, mesmo sem saber a resposta, tem algo chamado atitude. Com um linguajar próprio – que o diga o dicionário baianês -, aqui jaz a síndrome do Baêa – que pooooorraaa!
Há esgotos a céu aberto, lixões urbanos e mares poluídos; morosidade, desorganização, obras inacabadas e uma infinidade de cidadãos que não zelam pelo mínimo que é feito; há gambiarras, e o jeitinho brasileiro se revelando mais baiano do que se imagina...
Mas há uma Salvador que não conhecemos. A cidade vista pelo volante, com autonomia para ir e vir – ao menos quando o trânsito não está travado. Há o sabor irreverente do acarajé, das moquecas, dos camarões e da refrescante água de coco (mesmo que o fruto venha de outra cidade ou do vizinho Sergipe).Há o movimento de bike, que torna a capital mais humana e ecologicamente viável. Há muito por fazer...
Salvador bem que poderia ser escrita de outro jeito “salva dor”, afinal, é preciso curá-la de todos – ou boa parte dos seus males. Mas dizem que quem canta seus males espanta! Será por isso que as pessoas desta terra transformam tudo em musicalidade? E que tal um novo hit pro verão? “Salva dor”, já ia”...