Segundo relatos dos nativos, o barão possuía cerca de duzentos escravos, sendo estes, os protagonistas da construção da Igreja de Pedras. Para alguns, é impossível um ser humano levantar tamanho peso: “Só pode ter sido algum pacto”, desabafam. Atualmente a maioria desses moradores não reside mais nos povoamentos ao lado das ruínas, mas, a alguns quilômetros de distância - próximos da cidade, no entanto, permanentemente ligados à história local.
Para chegar até às ruínas, não bastam pés ou patas: é preciso muita fé e determinação, o que é reforçado pelo perfil dos personagens no interior do 4 rodas: dentre eles, irmã Alzira e Pe. José, austríaco que trabalha na região há mais de trinta anos. Diante do sentimento de inconformismo daquela em virtude de partidarismos tão regionais, este ressalta a necessidade de que o "sentimento não pode parar" e, já que a luta continua, abrimos caminho por entre motos e animais de carga, que, ao mesmo tempo, sobem as montanhas num abre e fecha de cancelas harmonioso.
As conversas sobre movimentos sociais, sociedade civil organizada, preservação ambiental, valorização cultural, desbravamento da história in loco são interrompidas quando vemos um veículo estacionado no topo da serra à esquerda, num caminho aparentemente aberto como ponto de estudo para possível exploração de minério. Logo à frente, avistamos um senhor de muletas sentado numa grande pedra, ao lado de dois veículos que não conseguiram escalar as serras íngremes - e as facilidades são muito maiores, se comparadas há outros tempos.
Pe. José, sentado no banco da frente, ao lado do motorista, também ativista social, narra o episódio da vinda do diretor e engenheiro do IPHAN em 1980: “Um não aguentou subir, o outro chegou às ruínas, encantou-se pelo local e sua história, mas, no fim da conversa, ambos alegaram que o difícil acesso atrapalharia qualquer obra de restauração”. 29 anos se passaram e nenhum avanço quanto ao tombamento da igreja, apenas discussões corriqueiras sem engajamento real do poder público. Dentre as alternativas listadas, surge a articulação dos gestores das quatro cidades, em parceria com o governo do estado e a União.
Pelo caminho de sol a pino, duas ou quatro rodas tecnológicas lado a lado com cavalos, jumentos, cachorros e pernas suadas em sua meta: assistir à missa, que se iniciaria às 10h. Para alguns grupos, beber, comer e jogar conversa fora talvez seja mais importante do que se calar, ouvir e avaliar opiniões.
Pelas frestas da igreja, observamos o lixo que aos poucos se acumula: latinhas, sacolas plásticas, vidros... e nos perguntamos: “Onde está a consciência ambiental?” Outro grande desafio a ser atingido! Logo, iniciamos um mutirão para recolher, pelo menos, parte dos resíduos descartados naquela manhã clara, límpida e tão envolvente.
Estudiosos, pesquisadores, religiosos e desbravadores também marcam presença na Missa de São Miguel das Figuras: cariocas sentem-se encantados pelos resquícios que escondem tanto do passado (mesmo degradados por elementos naturais ou pela intervenção humana): missões, exploração de ouro, aldeamentos indígenas e quilombolas, laços de família e de irmandade. Por aqui ainda se costuma chamar os conhecidos de “cumpadres” e “cumadres”; agradar o visitante com cachos de bananas, por exemplo, é uma das especiarias do lugar, ação rotineira dos nativos tão hospitaleiros desta terra de riquezas.
Após a missa, a famosa farofa é repartida com os visitantes, ao lado de geladinhos vendidos por nativos que em seus caçuás, trazem o ganha pão, ainda que para isso "precisem" deixar parte de seus produtos descartada nas gramas das ruínas, alegando excesso de peso.
Os mais antigos insistem em lembrar imagens guardadas na memória ou em cantos dos casebres de Coqueiro, Barrocão e municípios vizinhos. “Fui padrinho desse casamento que o padre está citando”, afirma um senhor de cabelos grisalhos e blusa azul celestial, que se encontrava ao meu lado durante o sermão. Nos palcos alternativos, “bebedeira” e muito samba, embalado ao som de pífanos, conversas e projetos discutidos diante do encontro de vozes plurais.
A construção da Casa de Apoio é citada através da leitura de uma carta de quem já esteve no local e não se deu bem diante das poucas alternativas estruturais. Cena que acabamos de constatar, ao presenciar a vertigem de uma senhora por conta da alta temperatura. A céu aberto, o que sobrou da igreja serve de abrigo durante as horas destinadas a celebrações e festividades. Faça chuva ou faça sol, as sombrinhas são companheiras fiéis dos que insistem em superar os próprios limites. Tanto é que na direção do altar, o colorido delas se mistura aos arranjos e acessórios postos ali: bandeira do Brasil e imagens santificadas, sob uma pequena cruz de madeira.
As narrativas sobre descobertas contemporâneas de caixões de ouro enterrados há anos debaixo da terra das Figuras são recorrentes. Durante aproximadamente três horas na trilha de volta para casa, lembramos um passado que se foi, mas permanece vivo para os herdeiros deste lugar. Uma oca abandonada, possivelmente pelos nossos antepassados indígenas, é referida como a “pedra escrita”, na qual os nativos deixaram marcas de uma civilização.
De bocas secas, todos esperam por gotas de água, após horas de caminhada sobre a areia - por vezes esbranquiçada, noutras enegrecida – e rodeados por uma paisagem única em sua magia, afinal, estamos na rota das figuras de pedras, lapidadas por toques meramente naturais - não é à toa que pedreiras se instalam no local em busca do enriquecimento pela exploração.
No trajeto, cânticos religiosos e enraizados na cultura popular embalam corpos já em movimento pelo sacudir das subidas e descidas de chão batido. A primeira parada, antes de seguir pela estrada afora, é em Santa Cruz do Coqueiro, para hidratar os corpos cansados, no entanto, energizados com boas ideias a partir da troca de experiências.
Às 18h, estacionamos na Cidade do Ouro, ironicamente qualidade que se refere ao recurso ainda hoje explorado, levado das mãos de garimpeiros solitários às grandes multinacionais exploradoras. Todos já sentem saudades e dizem: "até à próxima, se Deus permitir!”, indagando quando acontecerá o evento seguinte nas ruínas de encantamentos e surpresas.
*Fotos by myself